quarta-feira, 14 de julho de 2010

Impressões (2/n)

Continuo a andar até encontrar a placa central que tem a boca do metro Pasteur, do outro lado o primeiro Hotel onde dormi em Paris; que não o primeiro onde me alojei, esse não conta; nesse guardei a mala durante umas horas; penso nessa noite uns instantes, encontro-a à medida que avanço, toco-a quando vejo a estrutura de pedra que sustenta a linha de metro e abriga três tendas sujas, ao lado uns mendigos. Um está a enrolar pacientemente um cigarro, o outro olha desconsolado a garrafa vazia de mau vinho. Neste ponto o metro sobe às alturas, olhá-lo a passar faz-me sempre lembrar os anos trinta, existiria este circuito nos anos trinta? Porquê os anos trinta? Os americanos, Miller, Hemingway, Stein, a tomarem conta de uma Paris fervilhante e acessível, literária, boémia, musical, mas sempre a mesma que encontro quando passo a rotunda de que não sei o nome, mas que me leva à Avenue de Breteuil, aquela que começa no 15ème e desagua no Septième. Será que os apartamentos do sétimo são mais caros? Mais luxuosos? Não sei, não é lá que vejo o Paul Bowles, o Joyce, a Anaïs Nin, o que vejo são os jardins no meio, cheios de gente. Ao lado, na terra joga-se pétanque, passeia-se de bicicleta, de patins. Na relva toca-se a bola de futebol, os grupos animados petiscam e bebem cerveja de lata e vinho em copo de vidro, toalhas estendidas, chego ao ponto mágico de intersecção com a Avenue de Saxe. Se olhar para a frente a partir deste ponto vejo a cúpula de ouro dos Invalides. Se virar a cabeça quarenta e cinco graus à esquerda vejo toda a Torre Eiffel gigantesca, a grande puta.
Parecia-me tão próxima quando a topei ainda há pouco na Catalogne. Caminho mais uns passos e é aí que dou com B, de pé, sózinho, olhar ansioso na relva de Breteuil, a figura ridícula com o sobretudo largo neste fim de tarde quente. Fico a apreciá-lo antes de me mostrar. B tem pretensões a escritor. Mas é evidente que nunca será um; é demasiado bondoso (no mau sentido) para se tornar escritor. De resto, que eu saiba, nunca escreveu nada. Mas também não quero saber. Basta-me falar com ele de tempos a tempos, tentar descobrir se acredita realmente nas suas ambições, no livro a decorar escaparates, a ser vendido aos intelectuais, às meninas, aos estudantes, a ser discutido por críticos de televisão pagos ao minuto para discutir à página; os direitos de autos a caírem paulatinamente numa conta bancária que não existe, em forma de zeros e uns à esquerda da vírgula e B a beber aperitivos nos bistrots, a jantar consolado nos restaurantes da moda, a falar às meninas da vida de escritor, do mundo, da política. A sua obsessão são as meninas, as Mulheres, esses monumentos a Paris, que se passeiam de saltos altos a baterem compassadamente no passeio, que se sentam na relva de Breteuil ou dos Vosges, a puxar a saia para cima mostrando as branquíssimas coxas, que se inclinam com as calças esticadas para baixo deixando aparecer o string acima do rabinho, que se deitam com a leve camisinha a descobrir uma barriga lisa. Bêê. Aprecia-as, adora-as, ama-as uma a uma, ama as miudinhas de 16 anos (sabe-o pelo borbulhento e encaracolado amiguinho); ama as balzaquianas de trinta; sonha com as dames aisées de quarenta anos que nunca irá encontrar debaixo dos seus lençóis de escritor frustrado. Sopro-lhe a boa tarde. Ele surpreende-se. Assusta-se. Estava em transe: estava deitado na relva de malmequer na boca; estava a passear de braço dado com a sua trintona, com todas as trintonas; estava a puxar a saia da adolescente mais para cima, a pôr-lhe a palma da mão na coxa, a subir lentamente, com paciência.
Não parece contente por me ver. Pudera! Acaba de se ver ao espelho, de se lembrar de quem realmente é, de acordar de um sonho tão dourado como o topo dos Invalides que se impõe em frente a nós. [Continua...?]

5 comentários:

Privada, o bacoco disse...

Aguardemos :;-)))))))) Ainda o kero ver a engomar camisas.

Taxi Driver disse...

Temos escritor! Inspirado pelo fim de semana...? ;)

Amil Neila disse...

Pois, Privada, não 'tá fácil: eu só escrevi até aí sem a mais pálida ideia de mais nada a seguir. Como sou:
1. Preguiçoso
2. Não muito imaginativo
3. Demasiado bonzinho para por outro a passar a ferro
Acho que é muito capaz de ficar por aqui :)

Amil Neila disse...

Taxi, estás a ofender terceiros.
Mas, quê? Não me digas que gostaste ;)

bartleby disse...

Bem, uma coisa é certa; esse teu período já relativamente longo na bela cidade vai-te dando inspiração para escrever... até porque essa cidade representa e inspirou de certa forma muito daquilo que mais aprecias enquanto leitor... Continua! Cada vez mais creio que o que leva alguém a escrever é, primeiro, ter alguma coisa a dizer, segundo, ter vontade de o dizer. Tendo isto e certa bagagem de leitor de grandes escritores, que é o caso, é meio caminho andado para a coisa se concretizar... mas também não tem que haver pressa... cada coisa a seu tempo.