Flex-office ou a distopia da entropia
Uma vez enunciei um problema baseado em várias experiências práticas de utilização de um sistema de bicicletas de livre serviço existente em Paris.
Esse enunciado, sei-o agora, relendo-o uns quase dez anos depois, não era outra coisa senão uma descrição do efeito de atracção gravitacional dos buracos negros massivos que tão ocupados mantêm os crâneos de ovo do CERN, da NASA, e de outros departamentos científicos com mais ou menos prestígio. A principal diferença é que no meu texto, pese a minha humildade o que pese, a aplicação prática traria benefícios muito mais tangíveis à população de uma cidade europeia que qualquer satisfação que possa ser proporcionada por um telescópio que está a tentar encontrar luzes que só veremos em alguns anos.
Mas, diga-se em abono da verdade, o que são 3 milhões de anos-luz quando a resposta a um texto de um blog chega com uns 10 anos de atraso, cortesia de Carlos Monteiro, no less? Pior, de que serve falar de bicicletas num mundo em que homens de barba rija, fato Armani e pasta com um Mac portátil vão trabalhar de trotineta? De nada, não é? É!
Então, exploremos o problema gravitacional dos dossiers desarrumados numa secretária de procrastinador… Quantos de nós chegam às 18h30, desligam o interruptor e pegam no carro ou apanham o metro para ir para casa com a consciência de que deixaram o dia verdadeiramente acabado? Não, não, eu sei, calma!, não estou a falar de nós, estou a falar de NÓS! De nós, nenhum, sei-o bem, mas entre NÓS, espécie diversa e variada, há-os e -as que não se levantam da mesa sem :
Ter lido o último mail da pilha de (anteriormente) não lidos
Ter respondido a todo e qualquer dos precedentes que tenha pedido resposta
Ter feito o balanço dos sucessos e falhanços do dia
Ter revisto minuciosamente a agenda do dia seguinte e eventualmente preparado para uma ou outra reunião
Chamem-lhes psicopatas, adjectivem-nos de sociopatas,... peçam-lhe aumentos! São os vossos CEO ou candidatos ao comité de direcção. São trabalhadores, inteligentes, atentos ao detalhe e têm a mesa num brinco. São robots desprovidos de humanidade ou empatia!
E são as principais vítimas do conceito de Flex-office, organização do espaço de trabalho potenciada pela pandemia do Coronavírus em que se privilegiou o tele-trabalho desde que se pudesse manter o tempo total de trabalho, reduzir despesas de aluguer e aumentar a motivação de trabalhadores que estavam eles próprios transformados em autómatos das nove às cinco.
E porquê? Porque o Flex-office, conceito que implica uma área de trabalho inferior ao necessário pelo número de trabalhadores (pressupondo 1, 2 ou 3 dias semanais de trabalho em casa), sem secretária atribuída e com salas de reuniões espalhadas por todos os cantos, também implica o fim da atribuição de um espaço a uma pessoa. E a escolha a cada manhã, de forma livre e às vezes imprevista, do sítio onde vamos sentar o rabinho pelo resto do dia.
Lembro-me agora de um amigo, agora reformado que, trabalhando numa empresa do ramo automóvel, se via proibido de qualquer personalização do lugar de trabalho (como por exemplo, fotos dele a jogar golf ou dos filhos a babarem-se para a câmara fotográfica). No entanto, contava-me que quando a empresa decidiu deitar abaixo as separações dos escritórios, o dele se distinguia no tecto pela cor negra do tabaco fumado à secretária durante alguns anos. Outros tempos…
Acontece que agora acabaram mesmo as personalizações, finito para as fotos nas paredes ou em cima das mesas. Mas, mais importante, honra à lei da gravidade que puxou para as lavas incandescentes do centro da terra todo e qualquer dossier que queira ganhar pó em cima de uma mesa após oito, dez ou doze horas de serviço.
Porque nada pode sobreviver mais de um dia nas assépticas secretárias do espaço de trabalho comum, com risco de encontrar de hoje para amanhã uma viagem do patrão mais autocrático ao sindicalista mais empedernido. O que talvez não fosse bom para nenhum dos dois.
Daí a questão das vítimas: estamos todos condenados a agir como se fôssemos esse psicopata.
Leia-se então o relatório de 56 páginas, faça-se os comentários que têm que ser feitos e passe-se a outra coisa. Exit à procrastinação e à sesta à sombra da macieira à espera de ver manifestar-se a grave lei da física que nos pôs os pés na terra e a cabeça pesada.
Mas deixem-nos lá esperar pelas férias grandes, mesmo que de apenas alguns dias se façam…