sábado, 14 de fevereiro de 2015

Porque é que estão todos a olhar para mim? Nunca viram?
Porquê um tal drama? Tanta razão para preocupação, tanta coisa dura que fazem todos no vosso dia-a-dia de merda baseados em ambições ou ideais que não trazem nada de concreto a ninguém e escolhem criticarem-me por estar sujo, a cheirar a lixo, a apodrecer do lado esquerdo da cara e do lado direito do peito, por estar a ser comido por vermes esfaimados da cabeça aos pés? Mas não, é um tal problema para vocês, para quem a vida é tão boa, que o meu hálito de podridão cheire a vomitado, que a minha expiração me traga o sabor de um refogado de couves cozidas há três dias? Que as meias rotas que trago exalem um camembert fora do frigorífico há três semanas?
Que tens tu contra contra a minha forma de cambalear batendo contra o muro à minha direita pondo depois o pé esquerdo na estrada à minha esquerda?
Não gostas da forma como levanto o braço mostrando o buraco no sovaco da camisola? Mas tu vives essa vida tão bonita, tão cheia e tão cheia de falsas preocupações com a humanidade que não te podes preocupar com um homem, não é? Tu vais passar uns cinco ou sete anos mais e ver que aquilo que existe na tua cabeça faz pouco sentido. Ainda por cima, isso coincidirá com a fase em que: 1) o teu relógio biológico; 2) os olhares dos homens do outro lado do passeio ou à tua frente no metro te dirão que não há mais, que está tudo acabado. Nesse ponto, o cheiro será menos fétido, o buraco na camisola um detalhe. Mas nesse momento eu estarei a ser comido por vermes que me saem das órbitas vazias dos olhos. Os meus cabelos estarão intactos, parece que as minhas unhas também, mas a minha carne terá apodrecido e os meus ossos estarão calcificados ou quase desfeitos. Nenhuma - absolutamente nenhuma! - das minhas palavras será recordada. E nenhuma das minhas acções terá marcado quem quer que seja onde quer que seja. Nenhuma decisão terá alguma vez sido tomada que tenha mudado sequer um sonho ou um pesadelo de quem quer que seja que se tenha deitado ao meu lado. Nenhum dEUS me terá recebido, é certo. Mas nenhum dEMÓNIO me terá metido num espeto para me fazer rodar num fogo de enxofre. Resta esse consolo, o de no nada me sentir tão em paz como qualquer outro, fazer enfim parte de um todo. De um nada...

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