sexta-feira, 5 de junho de 2009

Fuga - Jim - O Muro

acordo do sono mal disposto não sei se acordo ou se já estava acordado neste motel de putas onde vim parar a meio da noite sem ter escolha senão esperar o próximo comboio
enquanto finjo fechar os olhos sem ter reparado no bichinho que corre o lençol penso em mil merdas ao mesmo tempo no dia de viagem que tive e no que vou ter amanhã até me levantar e ir ao lavatório embutido na parede mas apetece-me mijar espero que o movimento do corredor acalme as vozes os risos o abrir e fechar de portas o elevador esforçado que range de quando em quando e salto para a casa de banho comum ao hall faço o que tenho a fazer sem tocar em nada

O filme começa dentro de momentos, anuncia aquela voz vazia, quem não estiver sentado esperará pela próxima sessão.
Conheci-te com quinze anos (catorze?), mas primeiro ouvi aquele orgão que rejeitei na minha ignorância adolescente por associá-lo a música de baile. Mas representavam certezas frágeis, as categóricas asserções da idade.

volto ao quarto lavo as mão que enxugo numa toalha gasta e dou uma espreitadela pelo quadrado da janela ainda está lá a mota e o tipo de pé ao lado dela eles vão e vêm compram levam deixam notas levam a dose para aguentar o início do dia seguinte sempre sem parar um corrupio à luz que vem da grande estação e amarela a praça

O charro ainda me ardia na mão quando vi o muro. Quinze anos depois, já não era para sair que o queria saltar, mas sim para me sentar outra vez naquele banquinho de pedra onde tínhamos que nos desviar das bolas de futebol dos pontas-de-lança de meia tigela que pensavam ser Maradonas e Madjers.

Depois de assimilado o orgão - e o resto - nunca mais nos separámos. Chegar a casa com o Sol tardio de depois das aulas, servir-me um uisque roubado da garrafa de casa que bebia com uma careta enquanto te ouvia, fechar os olhos e escutar as palavras do The End, meter os auscultadores para o murmúrio do Riders On The Storm, o sussurro quase imperceptível paralelo à tua voz, esfalfar-me nos acordes do People Are Strange, são repetições tão constantes como as semanas que passaram de 91 até 2009.

Quando caí, o vodka rasca de há pouco queimou na garganta, a cabeça andava à roda devagarinho, à toa, ouvi passos, mas não era o contínuo que vinha para nos apanhar a fumar cigarros escondidos. Era o quê?
O quê?

saio já o dia nasceu já tinha pago pesa-me a mochila pesam-me as horas de mau sono e o corpo sem banho que me limpasse dos lençóis puídos e acastanhados do catre onde me apoiei intermitentemente viro à esquerda e viro à esquerda outra vez entro tomo um café lento como uma torrada com manteiga fumo o cigarro olho para eles para o movimento sincronizado de entra e sai na estação vai-se trabalhar para um lado para outro fumo outro cigarro e vou comprar o bilhete para berlim depois olho em volta entro numa cabine

Sinto a pedrada, estou estranho, ouço as articulações das pernas ao caminhar, sinto a ganga a roçar perna com perna, o suor cai-me pelas costas mas não é do esforço que faço no intervalo do almoço para enfiar a bola no cesto de basketball do recreio de cima.

marco o número toca toca toca ninguém atende o movimento da rua continua a aumentar desço a boulevard de strasbourg lojas e mais lojas as boutiques de sedas garridas castanhas laranja verdes vermelhas as lojas de telemóveis com as melhores tarifas e os melhores acessórios pode ligar daqui para o estrangeiro cambistas casas de transferência de dinheiro da imigração legal ou sem papéis o restaurante best africa os cabeleireiros são porta com porta cabeleireira afro super curling senegal hair coiffure black lá dentro dez vinte trinta mulheres são penteadas com energia fazem-se tranças madeixas corta-se estende-se frisa-se uma linha de montagem de esculpir cabeças

Agora, aqui estás (estás?), debaixo deste rectângulo de terra escondido na 6ª divisão do Père Lachaise. Alguns maluquinhos atiraram-te flores, cigarros, e até um charro bem enroladinho. Em que acreditarão eles, coitados? Saber-te-ão capaz de fumar? Que oura sentirás se o conseguires acender?
(não vi nenhum isqueiro)
que transe é esse agora, sem whiskey, sem ácido, sem erva?

E é de noite. No recreio nunca foi de noite.
...foi, foi, não te lembras?
Não devia ter fumado aquela merda toda, agora aguenta-te, ouve, responde, mantém o controlo, não deixes o terror apoderar-se, keep cool, keep cool

as montras mostram a confusão que lá vai se nos concentrarmos nos espaços sem letras imprimidas, sem preçários, sem fotografias
do outro lado vejo a loja de cabeleiras postiças de onde vêm aqueles cabelos
cá fora homens esperam e eu ando agora em passo acelerado viro à direita tentando lembrar o mapa mas não quero parar não quero abri-lo volto então à direita outra vez subo e viro de novo estou lá outra vez

Que fim foi esse, tão enigmático, tão à medida do mito que criaste, sentiste-o próximo, ao teu belo amigo, conseguiste imaginar como iria ser, tão livre e ilimitado?
Que estranhas cenas terás conseguido ainda ver, que mina de ouro descobriste, que cobra cavalgaste nos trinta orgasmos de uma overdose de heroína?

cada vez mais gente
passam pretas de todos os tipos pretas boas pretas velhas bonitas e feias mamas a saltarem de decotes de cores vivas falam alto de voz grave enquanto caminham e eu agora quase corro balanço a mochila para um lado para outro na rue st. denis sinto a bolsa de fora com a mão o fecho apertado o volume é o mesmo até agora tudo bem

Foi de noite, foi, o recreio abria durante a semana cultural e íamos ouvir o Festival da Canção, ver os espectáculos, brincar uns com os outros, jogar à bola, primeiro; depois as primeiras cervejas, as garrafas de aguardente, de licor, do que viesse, roubadas aos velhotes;

viro agora à esquerda para voltar a descer até ao cruzamente com os arcos de pedra da rue réaumur que festejam as vitórias de não sei que imperador

os apalpanços mal disfarçados às meninas mais velhas; os beijos urgentes na namorada eterna; a pedrita de haxe mal desfeita no cigarro gordo, chego a casa ourado, com o sabor dos teus lábios, o cheiro da tua pele, a música dos PIL a sair do gravador de cassetes
"Better Days Will Never Be Better Days Will Never Be"

à volta das scooter as putas riem alto são todas orientais não têm ponta de graça e ainda menos à medida que me aproximo o pó de arroz já começa a desfazer-se debaixo do sol que se levanta sinto o cheiro intenso a caril e entro numa passagem estreita restaurantes indianos com menus baratos e menos baratos não me enganei no cheiro passa por mim um árabe da mão caída vem um cheiro a haxixe de boa qualidade que mata o caril

E tu que estavas lá, que me quiseste dar aquela t-shirt com a sombra do Robert que trazias vestida e que eu não aceitei, tu a quem reencontrei anos depois, mais atinado, menos rebelde, e que acabaste por fazer a mesma asneira de alguns dos nossos heróis e nos deixaste para aqui

Magoou-te libertares-te sem deixares ninguém seguir-te? Ou tentaste tantas noites morrer para nunca deixares de ser seguido?
E as luzes, podemos apagá-las mesmo antes da música começar, como sempre fizemos?

saio entro
estou só
a mochila pesa
despistei-os...

5 comentários:

Taxi Driver disse...

Fdx! É pena que ele já esteja a fazer tijolo, senão é certo que se orgulharia de tão bela prosa lhe ser dedicada! Tanto um como outro...

everything in its right place disse...

É a AntónioLobAntunelização total do Paris Mosh!

Amil Neila disse...

Hey, calma aí, nem é essa a intenção, nem isto permite que insultes o homem...

DomingonoMundo disse...

Uma bela (e negra) short story! Dificuldade em comentar, ainda mais porque identifico discursos e histórias antigas, repisadas por essas noites de copos fora... Clara desvantagem deste leitor!

bartleby disse...

Interessante, interessante... bela homenagem!