sábado, 30 de maio de 2009

Uma viagem diferente num calmo fim de domingo

O Metro está pacífico. É tarde de Domingo e na maior parte das carruagens há mesmo espaço para todos os ocupantes se sentarem. O que não é habitual na 13, a linha que rasga o intestino de Paris de Norte a Sul entre Chatillon e Asnières, uma das mais carregadas da rede (a mais, creio, à frente da linha 1). Na carruagem há 3 portas laterais, que dão para os bancos posicionados frente a frente no espaço vazio e, ao longo do corredor entre cada duas portas, temos de cada lado, dois conjuntos de quatro bancos laterais. Ela entra pela porta de trás e o discurso, esse sim, é o habitual, a voz alta, incomodativa, berrada:
«Messieurs et Dames, je vous souhaite une très bonne soirée, excusez-moi de vous déranger mais maintenant que les foyers sont fermés je redors à la rue, parce que les foyers sont fermés à cause que l'hiver est fini.
Je vous demande une petite pièce pour m'aider, parce que les foyers sont fermés et je redorm à la rua, j'ai faim, je veux manger, s'il vous plaît, messieurs. Excusez de me déranger, un ticket restaurant, un chèque déjeuner, une petite pièce, merci à tous»
Há pouca gente, ela passa a entrada do meio com o copo das moedas na mão, nos bancos está um casalinho, cada um a ler o seu livro, à frente dois irmãos chinesinhos pequenitos e muito amigos ficam um bocado tristes a olhar, ela passa
(nada)
E recomeça a ladainha, a mesma de todos os dias e ao chegar ao fundo
(ainda nada)
está o metro a chegar à próxima, a parar. Normalmente, ela saíria e iria repetir a ladaínha para a carruagem da frente. Mas o jovem guedelhudo, farto de a ouvir berrar na cara dele, antes de saír berra qualquer coisa que eu traduziria como:
«Foda-se, pára com essa merda, chata, pôrra, sempre a mê'ma merda»
E sai. No metro o ambiente é espesso, os dois chinesinhos ficam agarrados um ao outro, ela regressa, não saiu da carruagem e começa a berrar mais e mais forte aenquanto percorre agora o sentido contrário
«...à cause que l'hiver est fini, messieurs et dames»
No meio, apercebe-se de um pequeno movimento do elemento masculino do jovem casal e salta-lhe à frente da cara, tresloucada, a abanar o copo
«Monsieur, vous avez un petit sou?»
A cabeça do tipo abana e ela vira-se para a namorada, quase em cima dela, a recitar a sua miséria, a chorar e a lançar perdigotos em cima do livro, a berrar e o gajo berra um
«Arrête!!»
que se ouve no vagão inteiro, enquanto a mulher ainda deixa escorrer um fio de baba para a página do livro e a rapariga se começa a levantar.
A mulher regressa para a frente da carruagem, berra resloucada, tenho pena dela - e nojo - e tenho pena dos dois meninos chineses que estão tristes e assustados. Salta para a frente de um chinoca (mais do tipo filipino, diria), mais velho e berra-lhe com força:
«..vous ne savez pas qu'est-ce que c'est la misère, un petit sou...»
E berra e berra até o gajo, gesto brusco de mão, lhe pôr copo com as moedas a voar no meio do carro, ela está doida
«...chinois de mèrde, ...»
No meio da confusão já nem sei que pragas terá rogado ao metro inteiro, a Paris, ao mundo todo que dorme debaixo de telha e tem o que comer, e também aos outros clochards e esfomeados de todo o universo, mas recolheu as moedas para o copo, saíu ;e entrou aos berros na carruagem da frente, mais intensa ainda do que de costume durante ainda três ou quatro paragens...

5 comentários:

Taxi Driver disse...

C'est la misère...

La clocharde disse...

Ah, meu grrande cabrrão!! Parra a prróxima, atirro-te o copo das moedas au focinhô...

everything in its right place disse...

a miséria é uma merda... mas os miseráveis também nos fodem a puta da cabeça!

bartleby disse...

É fodido dizê-lo e até posso ser injusto mas essa é o tipo de miserável que provavelmente, a determinada altura da sua vida fez as escolhas erradas e acabou dessa maneira... Não é que não deva ser ajudada (todos os miseráveis devem ser ajudados) mas a arrogância não se perdoa. Se existe alguém que é causa directa da miséria em que vive é esse alguém a quem ela deve pedir contas e não a toda a gente indiscriminadamente. Se o estado é esse alguém, então que sejam os símbolos desse estado os visados.

lp@wonderland disse...

Que loucura!