terça-feira, 10 de novembro de 2009

(Não) escolher

Ao cruzar a entrada, de gravata a apertar o colarinho no ar condicionado do escritório, quase tive pena dele.
Numa qualquer vida paralela, eu, guedelhudo, cabelo apertado na nuca, dois brincos numa orelha e piercing no sobrolho, também trago uma t-shirt dos Maiden debaixo de um casaco da SEUR. Da TNT? Da DHL?
Também eu pingo três gotas de suor depois de ter subido os seis andares do prédio com uma encomenda aos braços.
Também o meu colarinho me faz suar o pescoço mal vejo que o elevador está avariado, mesmo antes de pôr o pé no primeiro degrau.
Também eu volto a descer as escadas, estou na carrinha, ligo a ignição e ouço o ronco do motor a esforçar-se para arrancar abafado pelo som dos Ministry. AC/DC? Motorhead?
Também eu faço as oito horas de serviço, gastando uma porção do meu magro salário numa sandwich rançosa para acabar as entregas antes das cinco e meia e evitar a hora de ponta no regresso a casa. Sem pensar no dia seguinte.
Sem me preocupar com equipas, com agendas, com prazos, com problemas que zelo para que sejam resolvidos.
Sem pensar em nada disto, conto também os minutos para o fim-de-semana, e faço cruzes nos feriados que não calham a um Sábado ou Domingo (já me roubaram mais um!) para me sentir feliz e realizado com esse outro eu.
Tiro o casaco do Express Mail
(a gravata?)
passo-me debaixo do chuveiro e vou para o tasco encontrar o pessoal
(são os mesmos)

Teria, absolutamente da mesma forma, sido falho de coragem para vir para Paris de guitarra às costas para tocar no metro. Ou carregado de telas e tintas
(mais baratas ali)
para me instalar na Place du Tertre
(nunca soube desenhar)
ou armado de folhas e ideias para escrever o meu romance enquanto morria à fome num sótão de Montparnasse.

Teria sido tão falho de coragem ou tão visionário como fui quando decidi deixar a banda de Heavy Metal e mais aquela malta toda na garagem com cheiro a tabaco onde ainda devem estar hoje para dedicar a vida à (na altura) mulher da minha vida e às viagens para a cidadezinha de castelo altaneiro onde fui caloirar.
Na verdade: visionário: a verdade é que lancei tantos álbuns como os que continuaram (nenhum), vendi tantos quadros como os melhores desenhadores da turma e ganhei tanto com os livros como a maioria dos bons escritores ganha hoje.

***

Há uns meses largos decidi pôr na balança, talvez para me convencer que não era falhado nenhum (apenas um caguinchas), o que ganhei e o que perdi
(o que ainda podia perder e ganhar)

E pesou-me
  • A reunião às cinco da tarde para discutir o abstracto e sair com a lista de compras de duas páginas
  • O nervoso de me perguntarem como estamos disto e daquilo e ter que responder sem responsabilizar outros
  • O verdadeiro stress de me sentir abaixo de nível onde quer que esteja e mesmo assim fazer um esforço tremendo para disfarçar (e, às vezes, conseguir)
  • O não poder dizer, sempre, às cinco e meia, "tanto faz, mais meia hora e piro-me"
  • Ver cinco caras a olhar para mim e a perguntar: "e agora?" e ter que dizer uma merda qualquer

Mas do outro lado tentei ver as compensações
  • As férias são para todos e, sabendo parar e levá-la bem, ainda por cima dá para ir aonde se quer
  • Não contar os dias para o fim do mês nem ligar muito a preços (mas ajuda saber gastar menos do que o que se ganha, é certo)
  • Curtir o fim-de-semana na boa (também é preciso saber dizer "Isso não é comigo!")
  • Apesar de ter jurado nunca usar fato (casar, nem pensar e no baile de finalistas não pus os pés) acabei por preferir usar um fato e um nó de gravata que uma calcinha d'ir ao pito com camisinha à beto
(só tenho dois estilos de roupa: a farda número 1 para trabalhar e as calças rotas com a camisola no resto do tempo - e tudo com cores muito parecidas para não pensar, roupas até rasgar e modelos base que troco quando acabam sem grandes inovações)
  • Realização profissional, variação de rotina, etc, etc, etc, sinceramente não ligo por aí, acho que é p'ra frouxos. É deixar-me ganhar o milhões e vocês vêm a carreira e o que vier à frente...

Em suma, sempre que vejo o tipo esfarrapado a esgalhar uma viola estropiada por encontrões e com fita adesiva cabong das bebedeiras constantes, com a trouxa na rua e banho de há duas semanas, não deixo de pensar que é só um tipo como eu, com tanto talento como eu e com um bocado mais de azar.
E que, se lá chegar, pode bem cagar-me em cima, vomitar-me no sapato engraxado e chamar-me cobarde vendido e eu ainda devia pagar-lhe direitos de autor por isso, que nem todos são Henry Millers ou Picassos.

Queiram os Deuses que acabe por se safar.
E que nós nos safemos também.

***

Por isso, acabo o café, vou à casa de banho, fecho-me e apoio a tola na parede, sinto-a a apertar contra mim, como se o prédio estivesse a tremer, respiro fundo, saio
E volto à reunião, botão do colarinho desapertado.

3 comentários:

privada disse...

Dá para imaginar o conteudo da encomenda. :-))) Baril!

Amil Neila disse...

Ah ah ah, bem visto, Privada :-)

Taxi Driver disse...

You're still a rock star too me! ;)